12.2.08

O brilho opaco do relógio


Aconteceu muito rápido
Estava saindo do restaurante, depois de um jantar agradabilíssimo em excelente companhia...
Aquela noite tinha tudo para ser inesquecível
E, de fato, foi!
De repente, sentiu um violento safanão
Quase perdeu o equilíbrio.
Quando, enfim, se recompôs do susto, descobriu por que era desaconselhável sair a pé à noite - mesmo morando a poucas quadras do restaurante...
Acabara de perder o relógio de pulso, engrossando assim as estatísticas de vítimas de roubo nas grandes cidades brasileiras.
Não era uma peça caríssima – apenas um presente de família, guardado com muito carinho e usado em ocasiões especiais.
Também não era rico, nem famoso como o apresentador de TV que teve seu Rolex roubado e deu chiliques através da imprensa!
Quem seria o ladrão?
Não houve tempo para reagir.
Só observou que era um sujeito baixinho, com uma tatuagem no braço esquerdo e cabeça raspada.
Muito pouca informação para uma cidade tão grande, uma multidão de ladrões baixinhos-carecas-tatuados e outra maior ainda de vítimas.
Sentiu um dolorido nó na garganta como há tempos não sentia.
Deu uma bruta vontade de chorar – como se um pedacinho da família tivesse desaparecido para sempre.
Depois de uns poucos minutos de perplexidade, disse que sentia-se bem, despediu-se de sua companhia e tomou o caminho de casa tentando ser racional, num momento em que as emoções afloravam de forma avassaladora.
Ir ou não à DP mais próxima prestar queixa?
Desejava mesmo era se isolar, ficar só – sem contato com o mundo...
Mas não queria deixar um acontecimento sinistro como esses acabar de forma melancólica.
Tinha que fazer algo.
Afinal de contas, fala-se tanto em reaparelhamento da polícia, investimentos em segurança pública, contratação de novos policiais...
Por um momento até deixou seus pensamentos devanearem um pouco, imaginando todo o efetivo do BOPE – aquele do filme, liderado pelo Capitão Nascimento, que aos berros ordenava aos “aspiras” que o relógio tinha de ser recuperado, nem que fosse preciso “pegar geral”.
Logo seu sonho se desfez quando parou em frente à delegacia de polícia do bairro.
Tudo parecia muito calmo.
Uma dupla de policiais assistia preguiçosamente a um jogo de futebol na TV.
Estavam tão sonolentamente esparramados em suas cadeiras e olhos fixos na tela que poderiam ser transpostos – usando as funções control C e control V, sem mexer um músculo, para a sala de casa, um barzinho ou ainda o estádio.
Informou que queria prestar queixa de um roubo.
Eles se entreolharam e disseram que isso só poderia ser feito no dia seguinte, pois o escrivão havia faltado ao trabalho.
Foi para casa...
Teve dificuldades para dormir.
Várias vezes repetiu aquele cruel exercício mental de imaginar o “se”...
Se tivesse ficado em casa, nada teria acontecido.
Se tivesse chegado ao restaurante mais cedo...
Se tivesse ido de carro...
Se, se, se...
Acabou dormindo, pois o cansaço prevaleceu sobre a angústia.
Na manhã seguinte conseguiu prestar queixa.
Não lhe deram muitas esperanças de recuperar o relógio.
Mas, ao menos, tinha cumprido seu dever de cidadão, numa hora dessas...
E a vida continuou.
Dois dias depois, resolveu inexplicavelmente assistir um daqueles programas policiais – estilo “mundo cão”, exibidos na hora do almoço.
Era uma pontinha de esperança de recuperar o relógio.
De repente o apresentador informou aos gritos – parecia que estava num circo anunciando a próxima atração, que o famoso ladrão da região havia sido preso na noite anterior.
Quando a matéria foi ao ar, o acusado permaneceu o tempo todo de costas e nada falou – fazendo valer seus direitos.
Entretanto, dava para ver claramente que se tratava do bandido que havia roubado o relógio.
O repórter então, mostrou o material apreendido em poder dele
Muitos objetos:
Celulares, documentos, talões de cheques, cartões de crédito, jóias e... vários relógios!
Parou o almoço na hora e correu para a DP.
Vibrou de alegria!
Detestava histórias com final triste.
Aquela seria diferente!
Chegando lá, apresentou a cópia do Boletim de Ocorrência e disse que tinha sido vítima do ladrão que tinha sido capturado.
Reconheceu facilmente o sujeito.
Sim, era ele mesmo.
Era um rapaz de uns 22 anos.
Parecia ter 42.
Estava num estado deplorável – imundo e muito machucado.
Parecia um animal pego à força.
Não conseguiu sentir pena.
Apenas queria sair daquele lugar o mais rápido possível e esquecer aqueles acontecimentos.
Identificação feita, foi levado a uma sala onde estavam os objetos roubados.
Realmente era muita coisa.
Seria fácil identificar o relógio.
Era dourado, com uma grossa pulseira com detalhes trabalhados.
O fabricante não era nacional e sim suíço.
Nunca houvera visto nenhum parecido.
Olhou cerca de 30 relógios organizados milimetricamente numa prateleira.
Nada...
Teria o bandido repassado a peça a um receptador?
Improvável.
Nesse momento, entrou na sala o delegado.
Parecia o “dono” de tudo aquilo.
Transpirava altivez por todos os poros do corpo.
Os três botões da camisa abertos mostravam uma robusta corrente de ouro em volta do pescoço.
Óculos escuros transformavam seu olhar em um enigma.
Ao dar uma ordem qualquer aos agentes esticou o braço...
Deu-se então uma cena surreal...
O tal relógio enfeitava o pulso esquerdo do delegado.
Não tinha como estar enganado.
Era ele mesmo!
O que fazer numa situação dessas?
Denunciar à ouvidoria da polícia?
Ir para a imprensa?
Partir para cima daquele marginal com apelido de Dr.?
Como provaria?
Não possuía nota fiscal de compra.
E se o delegado possuísse um relógio igual?
Receberia voz de prisão na mesma hora.
Seria matéria no repugnante programa policial.
Viraria companheiro de cela do careca-baixinho-tatuado e de mais uns quarenta, numa cela em que caberiam no máximo quinze...
Retirou-se da delegacia imediatamente sem falar.
Ninguém percebeu sua ausência...
Queria esquecer de vez tudo o que ocorrera nos últimos três dias.
Foi embora, anônimo, mais um brasileiro inerte diante de uma injustiça.
Alguém que gosta de enredos com final feliz.
Mas, infelizmente, foi protagonista de um desfecho triste e ao mesmo tempo patético...

Um comentário:

Desabafos & Confissões disse...

-"Prendam esse marginalzinho"
Ordem dada pelo delegado aos seus subordinados mostrando o material do crime empunhado com tanta altivez no seu braço esquerdo!
Pergunte a marca do relógio ao delegado e ele nem saberá pronunciar tal coisa, talvez até gagueje.
-Caçem e prendam os verdadeiros ladrões....
-Ops, quem vai fazer essa caça se os caçadores são os ladrões?
-Ahhhhhh, coitadinho do delegado, vai ver seu itinerário não cobre nem as despesas básicas da casa dele...
-TA LOKO? VC COMEU MER**? Eles já ganham bem até demais e ainda roubão os ladrões q aparecem pelas delegacias...
-Nossa, q absurdo, olha só isso. Agora nós nos perguntamos -"Quem irá nos socorrer? "Pena q não aparece ninguém pulando de vermelho e de antenas falando "Eu Chapolim Colorado", esses heróis infelizmente não existem, e hoje em dia já não podemos mais confiar em ninguém!